Federação Anarquista Quilombo de Resistência

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Hoje, data eleita pela narrativa hegemônica de independência do país nos da FAQUIR refletimos sobre as faces da necropolítica baiana neste ultimo mês. 

Para o povo de santo, Agosto é um mês sagrado. Para os terreiros keto, esse período tem Obaluaiê como um de seus regentes, é um período de comemoração e também muita cautela. Afinal, esse orixá está associado diretamente às doenças e à cura. Para o povo banto, é o período do nkisi Kaviungo que, ora é tido como representação do estado adoecido do indivíduo ora é visto como aquele que anuncia a proximidade da morte. Não à toa é no mês dessas sagradas entidades que se revela o avançado estado de adoecimento da Bahia que, através da política de extermínio encabeçada pela polícia militar, tornou-se zona de morte para a população negra, pobre e indígena. 

A Bahia inicia o oitavo mês de 2023 com 31 mortes em oito dias causadas por ações policiais nas cidades de Salvador, Camaçari e Itatim. Sob pressão, o petista Jerônimo Rodrigues, fala em “excessos” e “equívocos” por parte da Polícia Militar e se reúne com seus pares no Farol da Barra para convocar militares da reserva e anunciar chegada de novas viaturas para reforçar seu esquadrão da morte. 

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública traz que, entre 2015 e 2022, o número de mortes resultantes de intervenção policial na Bahia aumentou em 313%, transformando a polícia baiana na mais letal do Brasil. Esse dado macabro soma-se às notas da Secretária de Segurança Pública que define às vítimas da PM como “Homicidas e estupradores”, e aos discursos de Jerônimo Rodrigues exaltando os “200 anos de história da Polícia Baiana” e acusando jornalistas de desmancharem a imagem da polícia militar. 

O Governo do Estado da Bahia, após 16 anos sob tutela dos petistas, conseguiu desenvolver uma metodologia de extermínio baseada na “guerra às drogas” e no apagamento de dados. Afinal, ainda ecoa a metáfora do artilheiro usada por Rui Costa, hoje ministro da Casa-Civil. O farto orçamento que vem sendo paulatinamente empregado para “modernizar” a polícia tem em vista aumentar as ferramentas de repressão. É nítido que, parafraseando o rapper ALendasz, “Aqui na Bahia quase todo dia o racismo decide quem morre e quem vive”.

Também em agosto, os adeptos das religiões de matriz africana que carregam herança banto saúdam Kitembo – ou Tempo – o Rei de Angola. Enraizado na Gameleira Branca ou representado pela bandeira branca hasteada nos telhados, é através desse nkisi que se unem o céu e a terra; os reinos ancestrais; o presente, o passado e o futuro. Kitembo traz consigo uma ideia de conexão entre as dimensões terrenas e espirituais, além de evidenciar os ciclos do tempo. Esses arranjos que são trazidas na figura de tão imponente nkisi, configuram-se pautas importantíssimas para todos os povos indígenas. 

Os debates que correm nas esferas jurídicas do Estado Brasileiro sobre o Marco Temporal têm colocado uma forte pressão sobre os movimentos indígenas de todo país, que ao mesmo tempo veem-se cada vez mais abandonado por movimentos e partidos políticos da base eleitoreira. Uma crítica surge sobre a forma como o governo tem tratado não só essa pauta, mas expõe como o recém-criado Ministério do Povos Indígenas está esvaziado de suas funções enquanto é atacado e depredado pelas agendas de políticos bolsonarista e ruralista.

Na Bahia, dados importantes do IBGE mostram como o estado possui a segunda maior população indígena do Brasil. Contudo, menos de 8% dessa população vive em localidades indígenas – seguindo os critérios do IBGE. É essa população que convive com situações como a do território pataxó de Barra Velha, que há meses está cercado por pistoleiros, sob ataque frequente de fazendeiros e descaso dos órgãos competentes. Ilustrando esse odioso quadro a visita indesejada de Ricardo Salles, deputado bolsonarista e relator da CPI do MST, que aproveitou o momento para intimidar moradores.

Mesmo com as promessas feitas por Luiz Inácio, parece que a pauta indígena continua sendo conveniente à esquerda eleitoreira apenas em momentos pontuais. A fome, a malária e os garimpeiros continuam ameaçando os Yanomâmis no Norte do país. Meio ano depois das denúncias apuradas e com o esfriamento midiático da cobertura do caso, um relatório – intitulado “Nós ainda estamos sofrendo” – produzido pela própria comunidade mostra que a situação dos indígenas continua precária. Lideranças de territórios indígenas na Bahia fazem coro às reivindicações dos povos organizados em todo território nacional, exigindo melhores condições de saúde, educação, segurança e celeridade nos processos de demarcação de terras. 

Para o povo quilombola, foi um período de perdas enormes. Recebemos com  indignação a notícia do assassinato de Mãe Bernadete, liderança do Quilombo Pitanga de Palmares e ialorixá em sua comunidade de terreiro Há 6 anos, Flávio Gabriel,  seu filho, conhecido como Binho do Quilombo, também foi assassinado. Uma família marcada pela violência contra os povos do campo, quilombolas,  indígenas e todos e todas aquelas que lutam por manter a autonomia de seus territórios fora do alcance dos latifundiários, da especulação imobiliária e de grileiros de toda sorte.

Dez dias depois, o jovem José Wiliam Santos Barros, de 26 anos, foi assassinado na Comunidade Quilombola do Alagadiço, pela Polícia Militar. No relato dos moradores a crueldade e covardia fica evidente, Willian foi alvejado nas costas e morreu na hora, não houve possibilidade de reação ou diálogo. A polícia alega que o disparo foi feito pois o jovem estaria “empinando a moto”, a absurdez de uma declaração dessas não cabe em palavras. 

Essa não é uma história nova no Brasil, essa não é uma história nova na Bahia. A disputa por território puxa o gatilho, o racismo religioso invisibiliza sua morte. A mais de 500 anos nossos territórios seguem sendo saqueados, mercantilizados e destruídos. A morte ronda esses territórios, seus moradores e aqueles que lutam pelos direitos dessa população. Através do medo procuram fragilizar a luta, desmontar as famílias, apagar as histórias. O Estado segue compactuando com o capital. Violência, crueldade e impunidade ainda são usadas nos mesmo tópicos quando o assunto é a luta do povo do campo

Encerrando o mês de Agosto louvamos o dia destinado ao nkisi Angorô e ao orixá Oxumarê, divindades com grande semelhanças. Para os fieis, Angorô e Oxumarê remetem a fertilidade das chuvas, a ligação dos céus e da terra, às transformações e mudanças dos ciclos, e principalmente, a renovação. Que as águas abençoadas pela energia de transformem a dor e a raiva em organização e vitória, que se renove o espírito de luta do povo. 

Setembro traz em seu início um novo paradigma, a violência que subjuga as comunidades perífericas não vem apenas pela via Estatal. O Comando Vermelho toma de assalto o poderio do crime organizado, a consequência é da população no confronto brutal entre facções rivais e as forças repressivas do Estado na Bahia. Entretanto, vale lembrar que esse cenário não é novidade para a população soteropolitana, transforma-se em noticia ao adentrar as zonas nobres da cidade, vira estardalhaço quando os estilhaços chegam nos residenciais dos bairros nobres . Para os de baixo, o confronto e a violência sempre estiveram presentes.

A história baiana é marcada pela violência, aqui os chicotes dos senhores de engenho nunca cessaram suas atividades. O campo e cidade são marcados por sangue e suor. Contudo, a dor, do cansaço e da tristeza nunca foram impedimentos da revolta. Aqueles que caem sob o julgo feroz do Estado e seus dirigentes, ao contrário do que imaginam, nunca são esquecidos ou apagados da história. A ancestralidade cultuada pelo povo de santo ensina, protege e reaviva àqueles que lutam por uma vida digna. Nessa terra abençoada convivem a luta e o luto, a morte e a resistência, a perda e a memória. 

Na Terra de Todos os Santos,o povo persiste no enfrentamento para que todos santos tenham terra. 



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